Rogaciano Leite

Poema de Minha Terra

Rogaciano Leite
(Ao Dr. Gervásio Bonavides)

Eu nasci lá num recanto
Do meu sertão — que amo tanto!
Onde o céu desdobra um manto
Feito de rendas de anil;
Onde o Firmamento extenso
É um grande espelho suspenso
Refletindo o rosto imenso
Da minha Pátria — o Brasil!

Criei-me lá na Fazenda
Que foi minha velha tenda
Onde escutei a legenda
das coisas coloniais:
— Papa-figos, feiticeiros,
Cantadores, cangaceiros,
Caçadores e vaqueiros,
Reino Encantado… e outras mais…

A minha casa paterna
Não é a casa moderna
Onde somente governa
Gente da aristocracia;
É um casarão de biqueiras,
De esteios, de cumeeiras,
De travessões e soleiras,
Linha, ripa e caibraria!

É um casarão barrentio,
De labrojeiro feitio,
Desconforme, luzidio,
Minado de rubra cor;
As suas fulgentes telhas
Flamejam como as centelhas
Dessas lágrimas vermelhas
Que sol derrama, ao se pôr.

Existe à frente um baixio
Onde um sonolento rio
Descansa em dorso macio
Numa esteira de cristal;
Naquele terreno vasto
Onde a terra tem mais pasto,
Onde o Brasil é mais casto!
— Eu vi meu berço natal!

Lá por aquelas chapadas
Cresci jogando pedradas
Com todas as meninadas
Que havia na vizinhança…
O meu bodoque certeiro
Era o arco forte e ligeiro
Do tabajara guerreiro
Que é bravo desde criança!

Ah meu tempo de menino!
Tem de bem pequenino!
A minha vida era um hino
Cantando no coração!...
Tempo da primeira escola,
Da arapuca, da gaiola,
Do berimbau, da viola,
Da burrica e do pião!

Ah! Que tempo de fartura
De carne, de rapadura,
De leite e manteiga pura,
Coalhada grossa, escorrida…
Tempo de cascão de queijo,
— O manjar do sertanejo —
Ah! tempo velho que vejo
Retratado em minha vida!

Às vezes quando chovia,
De manhã bem cedo eu ia
Reparar se a vacaria
Estava em paz, no curral.
Depois, revia, ligeiro,
As cabras lá no chiqueiro,
Visitava o galinheiro
E percorria o pombal.

Ah! Que tempo de alegria
Quando, bebendo poesia
De calça curta, eu corria
À margem do Pajeú,
Comendo jaboticaba,
Melão, mamão e goiaba,
Cambuí, jambo e quixaba,
Maracujá e umbu!

Ah, Meu tempo de caçadas
Quando muitos camaradas,
De espingardas empunhadas
E bisaco e tiracolo,
Atrás de porco e galheiro
Entravam no marmeleiro
Com o pé veloz e maneiro
Que mal tocava o solo!

Oh! Que primorosas cenas
Quando nas tardes amenas
O pavão abria as penas
Iluminando o quintal!
Quando a “asa-branca”, saudosa,
Junto à juriti, queixosa,
Cantava triste e nervosa,
À sombra do braunal!

Estes quadros que aqui pinto
São quadros que não têm fim...
Oh! Quanto orgulho que sinto
De poder dizer assim:

— Nasci fitando as colinas
Onde as águas cristalinas
Espalham pelas campinas
O pranto que o céu chorou;
Onde a terra forma um adro
Mostrando a risco de esquadro
O mais invejável quadro
Que a mão de Deus desenhou!

Lá nas caatingas fechadas
Foi onde eu vi as boiadas
Correndo desesperadas
Com sobrosso do curral…
Onde o vaqueiro disposto
Num cavalo bem composto
Entre paus maneja o rosto
Num drama fenomenal!!...

Oh! Sertão das vaquejadas,
Do samba, das paneladas,
Dos prados, das cavalhadas,
Das fogueiras de São João!
Da carne assada na brasa,
Do pirão, do queijo quente,
Do cachimbo de aguardente
Feito de mel com limão!

No meu sertão brasileiro
Foi onde eu ouvi primeiro
O cantador violeiro
Modulando uma canção;
Fazendo da alma — cigarra,
Da garganta — uma guitarra,
Da vida — uma eterna farra,
Do Brasil — o coração!

Oh! Como o sertão é lindo
Numa noite enluarada
Quando o violeiro canta
Assentado na calçada!...

Na voz do bardo matuto
Há tanta brasilidade,
Que eu penso que’alma da terra
Encarnou-se na Saudade,
Para cantar na garganta
Desse caboclo viril,
Cuja face esbraseada
Parece que foi pintada
Com tinta de Pau-Brasil!

A gente sentindo tudo
Quanto o violeiro sente,
Parece que está sentindo
Uma cabocla pachola
Afinando uma viola
Pra tocar dentro da gente!...

O terreiro iluminado
Parece um prato mandado
Lá da cozinha da lua
Onde São Jorge — coitado!
Ficou morrendo de fome,
Pedindo que se lhe mande
Um bocado de coalhada
Com rapadura raspada,
Que só sertanejo come.

Oh! Se eu nasci sertanejo
Devo cantar meu torrão!
Devo cantar o que vejo
Na minha terra queimada

Mas, que, à noite, está banhada
Com as lágrimas da lua
Que chora desesperada
Pra vir morar no Sertão!

Ah! Se a lua pressentisse
O que se passa de noite
Aqui na terra da gente!...
Tudo quanto a gente sabe,
Tudo quanto a gente sente!...

É porque a pobre lua
Está velhinha, enfadada…
Quando não vai dormir cedo
Fica triste, recostada
Nos batentes do nevoeiro,
De tanto que está cansada
De viver encarcerada
Lá no céu, o tempo inteiro.

E mesmo a lua, coitada!
Já está de cabelos brancos,
Já está com a vista curta,
Já não vê mais quase nada!...

Mas, assim mesmo velhinha,
Se a lua botasse um óculo
Que avistasse mais distante,
E pela brecha das nuvens
Fitasse a terra, um instante,
Veria tanta da coisa,
Tanta coisa impressionante,
Que desse dia por diante
Desceria dos espaços
Para vir cantar nos braços
Do saudoso violeiro

Que todas as noites canta
Assentado no terreiro,
Namorando os olhos dela…
Mas namorando de longe
Como o vaqueiro namora
A filha do fazendeiro
Que não sai lá da janela!...

Suponhamos que essa lua
Fosse uma moça bonita,
Nova, robusta, catita,
Pedaço de tentação;
E descesse lá de cima
Dependurada nos fios,
Nos fios do coração
Que a gente manda pra ela
Dentro de um lindo balão;
Um balão que a gente solta
Pelas noites de São João;
Um balão que nunca volta…
Que nunca mais volta, não!...

Oh! Quando a lua chegasse,
Que fogosa animação!...
Quando a lua toda alvinha
Chegasse junto à fogueira
E dissesse: “Eu também vim…”,
Haveria tanta festa,
Tanto tiro de reiúna,
Tanto balão pelos ares,
Busca-pé, traque, estopim…

Tanta viola tocando,
Tanto zabumba gemendo,
Tanta cabôca cantando
Uns versos que são assim:

“Meu Sanjoão, meu Sanjoãozinho,
Meu santinho protetô,
Mandai pela voz do vento
Nutiças do meu amô!”

“As viola tão tocando,
Os menino tão correndo…
As cabôca tão cantando,
O zabumba tá gemendo…”

“Pru detrás daquela serra
Mora a fia do Jocão,
A cabôca mais bunita
Que Deus butou no sertão;
Apois aquela ispritada
Mastigou meu coração!...”

A lua, moça da Praça,
Que nunca dançou pagode,
Que nunca bebeu cachaça
Nem comeu carne de bode;

Que desconhece pamonha,
Que não sabe o que é canjica,
Que nunca tomou um banho
Nas correntes de um riacho
Acocorada debaixo
Do choramingo da bica;
Que nunca andou a cavalo,
Que nunca cantou um “coco”,
Que nunca tocou viola,
Que nunca amou um cabôco…
Quando visse a nossa festa
Talvez dissesse: — “Ora esta!!!
O povo daqui é louco!!!”

Talvez que desafinasse,
Ficasse desconfiada
Como a moça da Cidade
Quando chega na palhoça
De um matuto lá da roça,
Que é rico… mas não tem nada!

Mas depois que a lua visse
Como o povo sertanejo
Tem tanto afago e meiguice,
Tem tanta brasilidade,
Tem tanta hospitalidade,
Tem tanta bondade, tanta!
Deixaria o céu que encanta,
— Aquele céu cor de anil —
Pra viver na terra santa,
Santa terra do Brasil!

E seria mesmo fácil
A lua se acostumar
Com as coisas da nossa terra?
C’os vestidões labrojeiros
Das matutas lá da serra?

Ora não!... Quando ela visse
Uma cabôca faceira
Que, mesmos em ser pintada,
“Tem a boca tão rosada
Que parece uma talhada
De Goiabada Pesqueira”;

Talvez que se envergonhasse
De tanto baton nos lábios,
De tanto rouge na face…
Dessa beleza suposta,
Dessa maquillage tola
Que a nossa gente não gosta…

Quando ela visse a batata
Das pernas de u’a mulata,
Quando o vento sobe a saia…
“Umas coisas de outro mundo,
Como as fia do Reimundo
Do lugá Jaramataia”...

Oh! Decepção desgraçada
De ter as perninhas finas
De moças que são criadas
Nessas capitais grã-finas!...
Então a lua, ajoelhada,
Beijando a nossa Bandeira,
Diria: — “Eu sou sertaneja,
Meu povo! Eu sou brasileira!...”

São José do Egito — Pernambuco, 1943.