
O Rio Amazonas
— A direita, timoneiro!
Vêm paus nos igarapés!
E o nauta, mão sobre o leme,
Desvia a rota... o convés…
Adiante — as águas espelham,
Atrás — os céus se avermelham
Do sol poente no clarão;
Perto — estremece o remanso,
Longe — “cascos” em descanso
A margem do rio estão.
No bojo imenso das águas
Vê-se o horizonte distante…
Parece que a Eternidade
Abre o seio ao navegante!
O nevoeiro aglomerado
Desce agora mais pesado
Sobre a mata secular!
Águas... mais águas... espumas…
Distâncias... mistérios... brumas…
Amplidão... grandeza... mar !...
Se a vista do navegante
Vai se perdendo no além
Encontra mais um infinito
Que doutro infinito vem…
Ao lado a floresta espessa
Com as nuvens cobre a cabeça
Prendendo à cinta a caudal;
E sobre a cortina verde
A própria visão se perde
Na imensidade abismal!
Ouve-se d’água um soluço
Dolente, eterno, profundo…
— Porque esse rio é uma lira
Presa entre os dedos do mundo!
As suas cordas plangentes
Acordam dois continentes
Da terra embalando o cântico;
E sem que nada as sufoque
Trazem bemóis do Oiapoque
Para o piano do Atlântico
Nas asas desses mistérios
O pensamento se espalma…
Cascateia amor — no peito,
Canta a crença — dentro d’alma!
Revolvem-se ondas altivas,
Declinam-se águas passivas,
Descem troncos a correr…
E em tudo Deus se descobre
Mandando ao homem: — Sê nobre!
Dizendo ao moço: — Vencer!
Preso à razão das origens
Pergunta abismado o incréu
Se o céu é ninho da terra,
Se a terra é ave do céu!
Sobre a corrente liberta
Corre a proa descoberta
Bebendo luz na amplidão…
E o rio — esse enorme bravo —
Diz: — Quebra os grilhões, escravo!
Lava teu manto, Nação!...
Vendo esse gigante eterno
Tropeçar na imensidade,
A terra grita: “Justiça!”
Responde o céu: “Liberdade!”
Mas, ao som do abismo insano,
Geme o caboclo: “O tirano
Manda a fome atrás de mim!...”
E o Crime ri-se e murmura:
“Eu vim de uma raça impura…”
E a lei servil: “Também vim!”
Pois contemplando esse drama
Desenrolar-se no espaço,
Eu choro a sorte de um povo
Que inda tem ferros no braço!
A Pátria? Que é feito dela?
Exclama o Norte: “É aquela
Que no Sul se construiu…”
E esquecida em sua origem
Diz a Amazônia: “Eu sou virgem,
O Poder nunca me viu!...”
Sobre os troncos gigantescos,
No colo da selva imensa,
Cobre a face do Progresso
O manto da Indiferença!
E enquanto ninguém acorda
Viça a terra, a água transborda,
Ruge asqueroso o jaguar…
E no ventre dos mistérios
Vão se gerando hemisférios
Para o Futuro acordar!...
Sim; porque vendo esse rio
Vê-se nos mistérios seus
O selo da Natureza
Na palma da mão de Deus!
Parece um problema escrito
Nas digitais do Infinito,
Na carta das gerações…
E num delírio sem tréguas
Partem-se penas e réguas
Sem encontrar soluções!...
II
Não sei se isso é beleza ou agressividade…
Mas, não! Eu me ajoelho ante essa Imensidade
Porque sei que Ela é Deus!
No céu — como um perdão — refulge a luz intensa
E a selva é a Contrição florindo Paz e Crença
Nas almas dos Ateus!
Há na própria beleza uns traços de soberba!
A grandeza do abismo até parece acerba
Na corrente convulsa…
E tudo, ao mesmo tempo, entre blasfêmia e prece,
Perdoa, encanta, humilha, envolve, ama, enternece,
Sugestiona e expulsa!
Frementes temporais em milenares uivos
Assanham da caudal os pelos semi-ruivos
Esbatidos de sol…
Aqui, é um turbilhão; ao lado. um lago em cismas;
Adiante, da baía os brancos aneurismas;
Depois, um caracol…
Na fulva concha astral do intérmino horizonte
Deus parece surgir com o céu colado à fronte
E a terra sob os pés;
O pélago se alteia… o barco aflito geme…
E o vento como um cão deita a ganir no leme,
Invadindo o convés.
Anda um riso vermelho a iluminar o espaço…
Mas logo a noite chega introduzindo o braço
Entre o Leste e o Oeste;
E o pulso universal prendendo os dois abismos
Na força original de eternos paroxismos
Contra os quais nada investe!
Soberbo, colossal, garboso, independente,
Rebenta, varonil, dos Andes a corrente
E ordena ao chão: “Tremei!”
Quebrando com o cabelo os pentes da floresta
Exibe o dorso heril levando sobre a testa
A coroa de Rei!
Do manto verde-escuro as franjas nababescas
Enrolam-se nos pés das madrugadas frescas,
No trono imperial;
O sol deita-lhe ao ombro a túnica escarlate
E a selva diz: “É o Rei!” — Quando nos troncos bate
Seu cajado real.
Galopando entre as ilhas, rústico, indomável,
Sacode um turbilhão de espuma formidável
Das côncavas axilas…
Agora, já não é o rei pródigo e probo,
Mas o dragão que rói o estômago do Globo,
Devorando as argilas…
Esgalgado, a mover seu vasto frontespício,
Mostra o dorso à floresta, o peito ao precipício,
E as unhas crava ao solo;
A cauda retorcendo entre ramadas curvas
Leva troncos, raízes, frondes e águas turvas
Na cabeça e no colo.
Em face desse imenso dédalo intranqüilo
O Mississipi é um veio, é um pingo d’água o Nilo,
O próprio mar se encharca
Somente do seu verbo o retumbar profundo
Murmura com soberba entre os pulmões do Mundo:
— Eu sou o Patriarca!
A bordo do “Rio-Mar” — Amazonas, 21 de janeiro de 1948.
Vêm paus nos igarapés!
E o nauta, mão sobre o leme,
Desvia a rota... o convés…
Adiante — as águas espelham,
Atrás — os céus se avermelham
Do sol poente no clarão;
Perto — estremece o remanso,
Longe — “cascos” em descanso
A margem do rio estão.
No bojo imenso das águas
Vê-se o horizonte distante…
Parece que a Eternidade
Abre o seio ao navegante!
O nevoeiro aglomerado
Desce agora mais pesado
Sobre a mata secular!
Águas... mais águas... espumas…
Distâncias... mistérios... brumas…
Amplidão... grandeza... mar !...
Se a vista do navegante
Vai se perdendo no além
Encontra mais um infinito
Que doutro infinito vem…
Ao lado a floresta espessa
Com as nuvens cobre a cabeça
Prendendo à cinta a caudal;
E sobre a cortina verde
A própria visão se perde
Na imensidade abismal!
Ouve-se d’água um soluço
Dolente, eterno, profundo…
— Porque esse rio é uma lira
Presa entre os dedos do mundo!
As suas cordas plangentes
Acordam dois continentes
Da terra embalando o cântico;
E sem que nada as sufoque
Trazem bemóis do Oiapoque
Para o piano do Atlântico
Nas asas desses mistérios
O pensamento se espalma…
Cascateia amor — no peito,
Canta a crença — dentro d’alma!
Revolvem-se ondas altivas,
Declinam-se águas passivas,
Descem troncos a correr…
E em tudo Deus se descobre
Mandando ao homem: — Sê nobre!
Dizendo ao moço: — Vencer!
Preso à razão das origens
Pergunta abismado o incréu
Se o céu é ninho da terra,
Se a terra é ave do céu!
Sobre a corrente liberta
Corre a proa descoberta
Bebendo luz na amplidão…
E o rio — esse enorme bravo —
Diz: — Quebra os grilhões, escravo!
Lava teu manto, Nação!...
Vendo esse gigante eterno
Tropeçar na imensidade,
A terra grita: “Justiça!”
Responde o céu: “Liberdade!”
Mas, ao som do abismo insano,
Geme o caboclo: “O tirano
Manda a fome atrás de mim!...”
E o Crime ri-se e murmura:
“Eu vim de uma raça impura…”
E a lei servil: “Também vim!”
Pois contemplando esse drama
Desenrolar-se no espaço,
Eu choro a sorte de um povo
Que inda tem ferros no braço!
A Pátria? Que é feito dela?
Exclama o Norte: “É aquela
Que no Sul se construiu…”
E esquecida em sua origem
Diz a Amazônia: “Eu sou virgem,
O Poder nunca me viu!...”
Sobre os troncos gigantescos,
No colo da selva imensa,
Cobre a face do Progresso
O manto da Indiferença!
E enquanto ninguém acorda
Viça a terra, a água transborda,
Ruge asqueroso o jaguar…
E no ventre dos mistérios
Vão se gerando hemisférios
Para o Futuro acordar!...
Sim; porque vendo esse rio
Vê-se nos mistérios seus
O selo da Natureza
Na palma da mão de Deus!
Parece um problema escrito
Nas digitais do Infinito,
Na carta das gerações…
E num delírio sem tréguas
Partem-se penas e réguas
Sem encontrar soluções!...
II
Não sei se isso é beleza ou agressividade…
Mas, não! Eu me ajoelho ante essa Imensidade
Porque sei que Ela é Deus!
No céu — como um perdão — refulge a luz intensa
E a selva é a Contrição florindo Paz e Crença
Nas almas dos Ateus!
Há na própria beleza uns traços de soberba!
A grandeza do abismo até parece acerba
Na corrente convulsa…
E tudo, ao mesmo tempo, entre blasfêmia e prece,
Perdoa, encanta, humilha, envolve, ama, enternece,
Sugestiona e expulsa!
Frementes temporais em milenares uivos
Assanham da caudal os pelos semi-ruivos
Esbatidos de sol…
Aqui, é um turbilhão; ao lado. um lago em cismas;
Adiante, da baía os brancos aneurismas;
Depois, um caracol…
Na fulva concha astral do intérmino horizonte
Deus parece surgir com o céu colado à fronte
E a terra sob os pés;
O pélago se alteia… o barco aflito geme…
E o vento como um cão deita a ganir no leme,
Invadindo o convés.
Anda um riso vermelho a iluminar o espaço…
Mas logo a noite chega introduzindo o braço
Entre o Leste e o Oeste;
E o pulso universal prendendo os dois abismos
Na força original de eternos paroxismos
Contra os quais nada investe!
Soberbo, colossal, garboso, independente,
Rebenta, varonil, dos Andes a corrente
E ordena ao chão: “Tremei!”
Quebrando com o cabelo os pentes da floresta
Exibe o dorso heril levando sobre a testa
A coroa de Rei!
Do manto verde-escuro as franjas nababescas
Enrolam-se nos pés das madrugadas frescas,
No trono imperial;
O sol deita-lhe ao ombro a túnica escarlate
E a selva diz: “É o Rei!” — Quando nos troncos bate
Seu cajado real.
Galopando entre as ilhas, rústico, indomável,
Sacode um turbilhão de espuma formidável
Das côncavas axilas…
Agora, já não é o rei pródigo e probo,
Mas o dragão que rói o estômago do Globo,
Devorando as argilas…
Esgalgado, a mover seu vasto frontespício,
Mostra o dorso à floresta, o peito ao precipício,
E as unhas crava ao solo;
A cauda retorcendo entre ramadas curvas
Leva troncos, raízes, frondes e águas turvas
Na cabeça e no colo.
Em face desse imenso dédalo intranqüilo
O Mississipi é um veio, é um pingo d’água o Nilo,
O próprio mar se encharca
Somente do seu verbo o retumbar profundo
Murmura com soberba entre os pulmões do Mundo:
— Eu sou o Patriarca!
A bordo do “Rio-Mar” — Amazonas, 21 de janeiro de 1948.