Rogaciano Leite

Imortalidade

Rogaciano Leite
(Ao Teatro Amazonas)

Silêncio!... A festa dos gênios
Começou — na Imensidade!
Silêncio!... As harpas estalam
Nas mãos da Imortalidade!
Um candelabro ilumina
Da vasta noite a cortina
Que se desprende do céu…
Furacão, foge dos ares!
Lua, mostra o seio aos mares!
Nuvem, retira teu véu!

Prendendo o mundo entre os dedos
Vê-se um gigante... Quem é?
Responde o Tempo, solene:
“ — Sou eu... que inda estou de pé!
Quando subo nas tribunas
Pendem tetos e colunas
Sobre a humildade do pó;
Sou livre, corro no espaço,
E se ao céu levanto o braço
Ergo a fronte e falo só!...

Sob meu pulso de ferro
Vi tombar muitos impérios;
Milhões de sábios morreram
Sem conhecer meus mistérios…
Num simples gesto que eu faça
Esmago um povo, uma raça
De opulências transitórias;
Só respeito os monumentos
Que ante a luz dos firmamentos
Lembram martírios e glórias!”

Ouvistes? Foi um estalo
Que rangeu lá na amplidão!...
Vistes a ponta do raio
Que passou riscando o chão?
Foi a caneta da Glória
Que marca um traço na História
Junto do nome de alguém…
Calai a boca!... Silêncio!...
A voz de Homero e Terêncio
Já cortando o espaço vem!

Silêncio!... As lanternas brilham
Na cúpula secular…
Silêncio!... Abriu-se a cortina:
Aparece estranho par…
Diz ele, junto ao proscênio:
“ — Respeitai-me! Eu sou o Gênio,
Trago louros no frontal!...
Fui pobre, morri de fome,
Mas na terra anda meu nome,
Grande, soberbo, imortal!”

E Ela?... Aquela mulher loura
Que o segura pelo braço,
Banhada — na mesma luz,
Unida — no mesmo laço?...
“ — Ah! Não sabeis, porventura,
Quem sou eu? Que fronte pura,
Que lábios puros os meus?
Ele é o Génio, eu sou a Arte,
Sou liberta em qualquer parte,
Nasci do riso de Deus!

— Nas dobras do meu vestido
Não há manchas de impureza!
Somente os eleitos podem
Ver do meu rosto a beleza!
Se nasço de um pensamento
Dou glória ao dono do invento,
Levo seu nome ao Porvir;
Sou simples mas sou divina,
Com mil séculos sou menina,
Posso a tudo resistir!...

— Adorando meu semblante
E murmurando meu nome,
Muitos tornaram-se grandes;
Outros morreram de fome
Mas minhas tranças douradas
No colo das madrugadas
Podem sempre os aquecer;
Não deixo que a treva desça
Pra lhes manchar a cabeça,
Pra seus ossos envolver!

— Tive meu berço na Grécia,
Peregrinei pelo Egito,
Quiseram matar-me em Roma
Porém fugi ao conflito…
Nero quis ser meu amante
Mas não servi de bacante
A tiranos e pachás;
Nababos, reis e califas
Tentaram vender-me em rifas
Mas inda hoje vivo em paz!

— Quando a mão de Torquemada
Quis manchar-me o níveo rosto
Saltei de um século a outro,
Caí nas mãos de Ariosto!
Avançando mais um passo
Dormi no colo de Tasso,
Refugiei-me em Florença;
Do Gênio guardando a marca
Mostrei o mundo a Petrarca,
Revivi... com a Renascença!”

Não ouvis a voz divina
Que pelo espaço ressoa
Como um solfejo de arcanjo
Que sobre o recinto voa?
É a Arte! É o templo augusto,
Gigante eterno e robusto
Que tem por teto o infinito!
Dentro — são palmas que estalam…
Orquestras... Gênios que falam
Na linguagem do granito!...

Quem toca?... Será Beethoven?
Quem ri?... Será Mistinguetti?
Pinta a cena, Branco Silva!
Vibra a tecla, Donizetti!
Mas não ouvis? Na ribalta
Alguém pergunta em voz alta:
“Quem pintou esse painel?...”
— Carlos, finda essa opereta!
— D’Angelis, mostra a palheta!
— Capranezzi, ergue o pincel!

Bravos! Acendem-se as luzes,
A cortina vai cair…
O Gênio pede repouso,
Deixai-o calmo dormir!
Que templo!... Que Babilônia
Se levanta na Amazônia
À luz da Imortalidade!
— Um prêmio aos dotes humanos…
— Um desafio a mil anos…
— Um presente à Eternidade!...

Amazonas, fevereiro de 1948.